OPINIÃO: Responsabilidade criminal de gestores e servidores públicos: Desafios e limites

A atividade de gestão pública é uma tarefa formidável que, longe de ser fácil, revela-se intrincada e frequentemente desafiadora a ponto de ultrapassar a capacidade do gestor público. Esta complexidade muitas vezes excede até mesmo os limites da compreensão humana. Quando assumimos um cargo público, estamos imersos em um universo multifacetado, onde uma série de elementos se entrelaçam, desde a administração cotidiana até o estabelecimento de políticas de longo prazo.


Os gestores públicos enfrentam uma pressão constante para equilibrar interesses variados. O ambiente marcado por cargos de confiança, ligações com setores privados, participação em processos de licitação e a gestão de orçamentos tornam o ambiente de trabalho ainda mais desafiador. Cada uma dessas dimensões envolve responsabilidades complexas e, muitas vezes, suscita dilemas éticos e morais.



Nesse contexto, surge uma indagação essencial: até onde deve ir à responsabilidade criminal dos gestores públicos? A resposta a essa pergunta é crucial para a promoção da transparência, da responsabilização e da integridade no setor público. É necessário estabelecer limites claros e equitativos que permitam uma gestão pública eficaz sem sacrificar a dignidade e a liberdade dos indivíduos que assumem tais responsabilidades.


Por um lado, a imposição de limites à responsabilidade criminal dos gestores públicos é fundamental para evitar caças às bruxas e abusos de poder. A persecução penal excessiva pode paralisar a capacidade de tomada de decisões dos gestores públicos, minar a confiança na administração pública e afastar talentos qualificados da esfera pública.


Por outro lado, a impunidade não pode ser tolerada. Quando gestores públicos violam a lei de forma consciente e deliberada, prejudicando a sociedade e comprometendo o bem comum, é essencial que sejam responsabilizados por suas ações. A impunidade mina a credibilidade das instituições e mina a confiança pública, corroendo os alicerces da democracia.


Portanto, a resposta adequada a essa indagação reside em encontrar um equilíbrio sensato. Isso envolve a criação de mecanismos de supervisão eficazes, a promoção da ética na administração pública e a garantia de que as leis sejam aplicadas de maneira justa e imparcial e mais que isso – limites claros impostos pelo Judiciário.


Encontrar o ponto ideal entre responsabilização e proteção dos gestores públicos é uma tarefa árdua, mas essencial para construir uma sociedade justa e democrática, onde o interesse público seja sempre colocado em primeiro lugar.


O Poder Judiciário, ciente das complexidades inerentes à atividade de gestão pública e dos desafios enfrentados pelos agentes públicos, estabeleceu duas importantes barreiras para a responsabilidade criminal desses gestores. Essas barreiras, devidamente fundamentadas em decisões do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, visam encontrar um equilíbrio entre a persecução penal e a compreensão das dificuldades inerentes à gestão pública.


A primeira barreira estabelecida pelo Poder Judiciário é a necessidade de comprovar um efetivo prejuízo à administração pública, ou seja, um dano específico ao erário. Isso implica que um ato ilícito praticado pelo agente gestor deve ter a intenção específica de causar prejuízo aos cofres públicos e que esse dano efetivamente tenha ocorrido. Essa abordagem reconhece que a gestão pública envolve decisões complexas e que nem todo erro ou falha deve ser criminalizado. A jurisprudência, exemplificada pelo caso RE 1997708/SP do Superior Tribunal de Justiça, aponta nessa direção, ressaltando a importância de demonstrar o prejuízo efetivo ao erário.


A segunda barreira estabelecida pelo Judiciário se baseia no elemento subjetivo do tipo, ou seja, na condição subjetiva do agente. Para responsabilizar criminalmente um gestor público, é necessário demonstrar que ele agiu com dolo especifico, ou seja, com a intenção de cometer fraude ou prejudicar a administração pública de forma consciente. Isso significa que a mera negligência ou erro de interpretação não devem ser suficientes para caracterizar a responsabilidade criminal. Um exemplo desse entendimento pode ser encontrado no caso RE 1955311/RN do Superior Tribunal de Justiça, que ressalta a importância de comprovar a intenção dolosa do agente.


Importante nesse ponto, destacar a necessidade de comprovação do dolo específico pelo Ministério Público desempenha um papel fundamental no sistema de justiça, especialmente quando se trata da responsabilização de gestores públicos. Isso significa que não basta simplesmente demonstrar que um ato irregular ocorreu, mas também é necessário estabelecer que o agente público agiu intencionalmente, com a clara intenção de cometer fraude ou prejudicar a administração pública.


Portanto, a comprovação do dolo específico pelo Ministério Público é uma salvaguarda essencial que protege os direitos dos agentes públicos enquanto mantém a integridade das instituições e a confiança da sociedade no sistema legal.


Essas barreiras de responsabilidade criminal reconhecem a dificuldade inerente à atividade de gestão pública, onde decisões difíceis devem ser tomadas constantemente, e onde a má interpretação de leis complexas pode ocorrer. Além disso, elas buscam evitar a criminalização excessiva e injusta de gestores públicos que, em muitos casos, agem de boa-fé em prol do interesse público.


É importante ressaltar que essas barreiras não significam impunidade, mas sim a busca por um equilíbrio justo na responsabilização dos gestores públicos. O Poder Judiciário reconhece que a gestão pública é uma atividade complexa e arriscada e, portanto, procura garantir que a responsabilidade criminal seja aplicada de maneira criteriosa e justa, preservando a integridade da administração pública enquanto protege os direitos dos agentes envolvidos. Esse movimento na jurisprudência demonstra uma preocupação legítima em lidar com a complexidade da gestão pública de forma equilibrada e justa.


Em um contexto em que a gestão pública é permeada por desafios complexos, a busca por um equilíbrio justo na responsabilização dos gestores públicos é mais do que uma necessidade — é uma garantia para a manutenção da integridade da administração pública e para a promoção da confiança da sociedade nas instituições democráticas. As barreiras estabelecidas pelo Poder Judiciário, com base em critérios como a comprovação de dano específico ao erário e a demonstração do elemento subjetivo do tipo, representam um passo fundamental na direção de uma abordagem mais sensata e equitativa.


Nesse cenário, a jurisprudência demonstra uma compreensão cada vez mais profunda das complexidades envolvidas na gestão pública e reconhece os riscos inerentes a ela. Estabelecer tais barreiras de responsabilidade não é um ato de impunidade, mas sim um ato de justiça, que permite aos gestores públicos desempenhar suas funções com a devida responsabilidade, sem o temor de perseguições indevidas.


A gestão pública é uma peça-chave na construção e manutenção de sociedades democráticas e justas. Encontrar o equilíbrio entre responsabilização e compreensão das dificuldades é essencial para garantir que as melhores mentes continuem a contribuir para o bem-estar da comunidade. Em última análise, essa abordagem visa proteger o interesse público, promover a transparência e fortalecer as bases de uma democracia sólida, onde a busca pelo bem comum é o farol que guia a ação de todos os envolvidos na gestão pública.


 


Referências


Cordeiro, Marina. "Acerca da (des) necessidade do dolo específico e do prejuízo ao erário para a configuração dos crimes previstos nos artigos 89 e 90 da Lei de Licitações". (2016).


Sendtko Ferreira, Otávio. "O dolo específico e o efetivo prejuízo ao erário na responsabilização penal pela contratação direta no TJSC". (2021).





Bruno Barros Mendes é mestrando pela USP-FDRP, especialista em Ciências Criminais PUC-MG e advogado criminalista.


Revista Consultor Jurídico

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