Dignidade da pessoa humana e a intolerância religiosa

Poucos anos atrás, uma menina carioca de apenas 11 anos levou uma pedrada na cabeça após ser vítima de um ato de intolerância religiosa. O emblemático caso, dentre tantos outros, foi, — como não poderia deixar de sê-lo —, obviamente repudiado pela enorme maioria dos brasileiros.


Aquele fato nos remete à lembrança de outro, igualmente grave, que foi a veiculação pelo Google Brasil (e pela internet) de conteúdos claramente denotativos de intolerância e discriminação religiosa às crenças de matrizes africanas, o que levou o Ministério Público Federal, à época, a ajuizar ação civil pública com vistas à condenação da empresa a retirar dos meios públicos virtuais todos os conteúdos ofensivos.



O Poder Judiciário, por meio do Tribunal Federal da 2ª Região, decidiu pela imediata retirada dos vídeos listados pelo MPF da rede mundial de computadores, exatamente por entender que eram potencialmente ofensivos e fomentadores do ódio, da discriminação e da intolerância contra tais religiões, o que não corresponde ao legítimo exercício do direito à liberdade de expressão.


A menina, de acordo com dados amplamente publicados pela mídia, saía de um culto de candomblé e não estava só, mas acompanhada de um grupo de pessoas com roupas típicas da religião. Os agressores, paradoxalmente, levantaram a Bíblia e começaram primeiro a agredi-los verbalmente, — "diabos", "vão para o inferno" —, em seguida, lançaram pedras na direção em que estavam. Uma delas acertou a cabeça da menina, que, ferida e sangrando muito, foi levada às pressas para o hospital.


A contradição está no fato de terem usado um livro sagrado para cometerem atos de violência, desconhecendo o amor de Cristo, transcrito, por exemplo, no Evangelho de São João, que nos noticia o caso de uma mulher acusada de adultério trazida até o templo, onde Jesus ensinava, por escribas e fariseus. Esses indagam a Ele se a punição à mulher deveria seguir a Lei Mosaica, ou seja, a condenação ao apedrejamento para casos assim. Jesus então disse sua célebre frase: "aquele que dentre vós está sem pecado, seja o primeiro que lhe atire uma pedra" (João 7:53 até João 8:1-11).


Ora, a Constituição protege os direitos do indivíduo, sobretudo os relacionados à liberdade de pensamento e de expressão, portanto, de consciência, de crença e de culto. Também a Lei nº 12.966, de 24 de abril de 2014, trata, expressamente, da proteção à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos.


Como direitos fundamentais, as liberdades asseguradas na Constituição garantem aos seus destinatários não apenas a obrigação do Estado em respeitá-las, como também a obrigação de cuidar para que sejam respeitadas pelos próprios particulares em suas relações recíprocas. São as diferenças e o absoluto respeito a elas que se constituem a expressão do Estado liberal laico e, consequentemente, da verdadeira democracia.


"(Estamos diante de um) delicado momento para a sociedade brasileira, permeado de ações que apontam para um grave retrocesso nas conquistas sociais garantidas gradativamente com a Constituição de 1988. Entre elas, figura a consagração do Estado brasileiro como uma entidade laica". (NEI LOPES; Consciência negra e religiosidade, O Globo, 25/11/2017, p. 21).


Vale assinalar que, embora a liberdade de crença seja garantida constitucionalmente, casos de intolerância religiosa (especialmente quanto aos cultos de matriz africana) têm aumentado em diferentes estados da Federação, denotando que a proteção a esse direito fundamental ainda é um desafio para as autoridades.


Em todo o país, o número de denúncias saltou de 15, em 2011, para 759, em 2017, segundo o serviço "Disque 100", e, lamentavelmente, continua a crescer. O Procurador da República Jaime Mitropoulos afirma que, até setembro de 2017, havia uma denúncia de discriminação, violência ou intolerância religiosa a cada 15 horas, sendo certo que hoje a situação é ainda mais grave e preocupante. Para ele, essa estatística reflete tanto a proliferação dessas práticas na internet quanto a ausência de uma resposta firme por parte do Estado para esse tipo de crime.


O ritmo de crescimento desses episódios é igualmente avassalador em alguns estados. Na Bahia foram registrados, de janeiro a maio de 2019, 67 casos de intolerância religiosa, quase o mesmo número de todo o ano anterior (77), e a situação continua a se agravar, segundo a Promotoria de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa de Salvador.


No Rio de Janeiro essa situação, por si só inaceitável, se torna ainda mais dramática devido ao envolvimento do crime organizado nos ataques, muitos deles dirigidos a templos de religiões de matriz africana. Em Campos, no norte do estado, 15 terreiros já foram fechados de janeiro a maio de 2019 devido a intimidações ou agressões, sendo que o maior número de ataques a esses locais religiosos, comandados pelo tráfico, ocorre na Baixada Fluminense (Autoridades Precisam Conter Onda de Intolerância Religiosa no País, O Globo, Rio de Janeiro, 12/06/2019, p. 2).


Nunca é por demais lembrar que a glória da criação está em sua infinita diversidade (em todas as suas modalidades e naturezas) e na forma que nossas diferenças se combinam para criar significado e beleza à própria vida.


O discurso do ódio (ou de incitação ao ódio), — conjunto de manifestações de ideias capazes de suscitar atos de violência, ódio e/ou discriminação racial, social ou religiosa —, precisa ser, portanto, continuamente reprimido.


Vale pontuar que o conjunto de distintos tipos de discriminação, inobstante suas diferentes formas de exteriorização, encontra uma certa convergência na falsa ideia da supremacia, — seja de cunho racial, social, religioso, dentre tantos outros —, o que, por si só, afronta o princípio da igualdade, uma conquista fundamental das sociedades verdadeiramente democráticas.


É por demais evidente que tal princípio (mais corretamente chamado de isonomia) precisa ser corretamente interpretado, considerando que rejeitado de modo veemente às consideráveis manifestações de pretensa superioridade de um indivíduo sobre o outro, também não acolhe uma defesa intransigente pela "igualdade absoluta" entre os seres humanos. A natureza única e singular de cada um de nós já é, por óbvio, um obstáculo intransponível à igualdade plena.


Como bem esclarece o ministro Benedito Gonçalves, "a busca pela igualdade não pode eliminar todas as diferenças entre os entes da mesma espécie, tornando-os absolutamente iguais, posto que é o conjunto da diversidade que sedimenta a sociedade multicultural e pluralista. (...) Assim, o que se deve buscar, dentro da realidade, é uma equidade constante, não dissociando o direito à igualdade do conceito de justiça". (BENEDITO GONÇALVES, ministro do Superior Tribunal de Justiça – STJ; Antirracismo a Cada Dia, O Globo, 28/11/2022, p. 3).


"Sob a correta exegese do artigo 5º da CF/88, que expressamente afirma a igualdade de todos perante a lei, de fato, a igualdade nunca ocorrerá de forma plena, por inúmeros fatores. Além da cor da pele, fatores como a origem, o gênero, a idade e as deficiências distinguem os grupos sociais e personalizam o indivíduo como único. Em temor à indiferença, faz-se necessário analisar o indivíduo sob a ótica particular.


A violação, desse modo, não reside em tratar de forma desigual a humanidade diversificada, mas, sim, no tratamento discriminatório, vexatório ou degradante (...)". (BENEDITO GONÇALVES, ministro do Superior Tribunal de Justiça – STJ; Antirracismo a Cada Dia, O Globo, 28/11/2022, p. 3).


A sociedade brasileira encontra-se em um triste momento de conflitos e radicalizações (principalmente no campo político), não havendo razão para se acrescentar a esse cenário inflamável mais uma área de tensão. Portanto, considerando os ditames da Carta Magna com relação a todas as formas de discriminação, notadamente à proteção da liberdade religiosa, os organismos de Estado precisam se empenhar ainda mais para fazer cumpri-la, como convém no Estado Democrático de Direito, lembrando, ainda, como muito bem salienta o ministro Benedito Gonçalves, "haja vista alguns grupos demandarem maior apoio jurídico e político que outros". (BENEDITO GONÇALVES, Ministro do Superior Tribunal de Justiça – STJ; Antirracismo a Cada Dia, O Globo, 28/11/2022, p. 3).






Reis Friede é desembargador Federal, presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), mestre e doutor em Direito e professor adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UniRio).


Revista Consultor Jurídico

Comentários