OPINIÃO: A prescrição da contravenção disciplinar militar e o artigo 18 da Lei 5.836/72

 

O direito à prescrição foi reconhecido como um dos direitos fundamentais. Como ensina o festejado Lenio Streck [1]

"Prescrição é uma garantia. As garantias são para isso. É o indivíduo contra o Estado. Garantias constitucionais são a condição da democracia. Um garantista não escolhe lado. Aliás, escolhe sim: o da Constituição e das garantias"

Com relação à formatação do artigo 18 da Lei nº 5638/1972 (Lei do Conselho de Justificação), é tudo muito claro: Prescrevem em seis anos os casos previstos nesta lei. O prazo é computado na data em que forem praticados, isto é, da conduta. Simples assim [2].

Ora, ora, e a contravenção disciplinar militar cujo prazo prescricional é regulado pelo artigo 18 da Lei nº 5.836/1972 será imprescritível?!

Atendendo ao princípio da segurança jurídica, que é um direito fundamental, não pode o militar ficar à mercê da administração castrense para apuração do cometimento de falta disciplinar, nem para o cumprimento da penalidade imposta.

À vista disso, a doutrina majoritária, ou seja, Paulo Tadeu Rodrigues Rosa [3], Ronaldo João Roth/Sylvia Helena Ono [4], Jorge Luiz Nogueira de Abreu [5] discorrendo sobre o instituto da prescrição, no Processo Administrativo Militar, em face o artigo 18 da Lei nº 5.836/1972, prelecionam que: a referida norma não prevê causas de suspensão ou interrupção dos prazos prescricionais, entendendo serem ininterruptos desde a data de ocorrência.

No mesmo sentido, a ministra do STM, Maria Elizabeth Guimaraes Teixeira Rocha, nos embargos infringentes, nº 3-84.2008.7.00.0000:

"Efetivamente, a referida norma não prevê causas de suspensão ou interrupção dos prazos prescricionais, entendendo esta corte serem ininterruptos desde a data de ocorrência"

Nesta perspectiva, o voto do eminente ministro Carlos Augusto de Sousa, Conselho de Justificação nº 26-83.2015.7.00.000:

"Admitir-se que o prazo prescricional deve ser levado a efeito tão somente para a instauração do Conselho de Justificação seria dizer algo de que a Lei não dispõe. Em assim procedendo, estaria atuando este Órgão Julgador como verdadeiro legislador positivo, criando causa interruptiva de prescrição não prevista em Lei."

Ocorre que, inusitada tese, foi acolhida pelo Juízo da Vara Federal do TRF-2, julgando improcedente o pedido de reintegração de um então Oficial da Marinha, quando os fatos estavam fulminados pela prescrição. Vejamos fragmentos da fundamentação:

"É sabido que o prazo prescricional contido no dispositivo se conta somente até o momento em que é iniciado o procedimento disciplinar."

É sabido? Como assim? Sempre com todo o respeito, faltou combinar com o artigo 18 da Lei nº 5.836/1972 e com a Constituição da República.

Neste ponto de vista, com o devido respeito que a corte merece, a Turma Especializada do TRF-2, na apelação, acordou ou "copiou e colou" o entendimento do juízo de piso:

"O procedimento administrativo disciplinar em questão é regulado pela Lei nº 5.836/72, cujo artigo 18 determina que prescrevem em seis anos os casos ali previstos, prazo contado da data em que foram praticados os atos até a instauração do procedimento"

Pois bem. Dizer que o prazo se refere à instauração do procedimento administrativo é dar um drible na lei! É, também, uma grande rasteira na Constituição!

É, escancaradamente, uma eterna licença para a administração castrense punir os militares que cometerem contravenções disciplinares!

Onde, expressamente, a Lei nº 5.836/1972, delimita o prazo prescricional para desate do Conselho de Justificação a ser verificado entre a data da prática do ato infracional e a da instauração do procedimento?

Se o artigo 18 da Lei nº 5836/72 pudesse ser lido desse modo, seria o caos. Não haveria mais o Princípio Constitucional da Segurança Jurídica. Toda ordem jurídica deve ser lida pela lente da Constituição, pelo fenômeno da filtragem constitucional.

A pergunta hermenêutica-chave: após a instauração do procedimento (Conselho de Justificação) em qualquer tempo, por exemplo, 6 anos, 12 anos, 18 anos, será que a administração castrense poderá punir o militar?

O gravíssimo disso tudo é que gera — e isso é o general fato — a imprescritibilidade da contravenção disciplinar castrense.

Salta aos olhos a transgressão à Constituição. É uma esquizofrenia constitucional. Não é crível que se admita a existência da Lei nº 5.836/1972, em certo sentido e se conclua diametralmente de forma oposta.

É uma situação kafkiana, que se afasta absurdamente da lógica constitucional e infraconstitucional. Sempre é bom lembrar Lenio Streck: "Nada pode ser se não for constitucionalmente legítimo" [6].

Há uma obviedade tão óbvia quanto obviamente ignorada pelo v. acórdão que decidiu de forma incompatível com a Constituição, que, no caso concreto, torna o artigo 18 da Lei nº 5638/1972, inconstitucional; pois, os fatos se tornariam- escancaradamente, imprescritíveis, em tese, após a abertura do Conselho de Justificação.

Explico: no caso em debate, as contravenções disciplinares, ou seja, faltas a bordo, datam de setembro de 2007. Em 1° de março de 2008 foi instaurado Conselho de Justificação. O processo disciplinar concluído, somente, em 3/3/2015, ou seja, fora do lapso temporal de seis anos, em desconformidade com o artigo 18 da Lei nº 5.836/72 (Lei dos Conselhos de Justificação)

Não se pode dizer qualquer coisa sobre as leis e a Constituição. Sempre há limites, adverte Lenio Streck [7].

Por consequência, a tarefa da interpretação, como observa Gadamer "consiste em concretizar a lei em cada caso, isto é, em sua aplicação" [8]. No mesmo sentido, Eros Roberto Grau, para quem interpretar é "dar concreção" [9].

Por outras palavras, não há interpretação constitucional conforme o desejo dos intérpretes. Funciona assim no Estado Constitucional e Democrático de Direito.

Vejamos o absurdo jurídico. A contravenção disciplinar, por faltas a bordo, que é menos gravosa poderá ficar imprescritível. Já o crime militar de deserção poderia, em tese, prescrever em quatro anos!

Quer dizer, no caso concreto, o Direito sendo levado ao absurdo! Não é o império do Direito [10]!

Na verdade, ensina o mestre Lenio Streck [11]:

"quando o intérprete decide como lhe convém, já não há direito; há, apenas o direito dito pelo intérprete. Por isso, o direito não pode ser aquilo que os juízes e tribunais dizem que é"

Em nome do combate as infrações administrativas castrenses, não se pode torturar o artigo 18 da Lei nº 5.836/1972. E, claro, nem a Constituição!

Com efeito, para os oficiais da Forças Armadas, é de se reconhecer que a contagem da prescrição quando o fato envolver hipótese que fundamenta a instauração do Conselho de Justificação (falta disciplinar), será ininterrupta desde a data do fato, sendo incabível a interrupção e/ou a suspensão de seu prazo sob pretexto de qualquer motivo estranho ao artigo 18 da Lei nº 5.836/1972.

Nesse sentido, o poder disciplinar da administração castrense, não deve e não pode ser feito à revelia das garantias constitucionais fundamentais.

A busca da eficiência na punição ao militar que cometer faltas disciplinares, jamais se pode dar com retrocesso dos direitos fundamentais. Não há um vale-tudo. Aliás, para o magistério do professor Renato Ferraz [12].

"o Administrador público não tem vontade. Não tem desejo. É mero executor da lei, vale dizer, sua conduta tem que ser pautada na legalidade constitucional"

Tal conjuntura demonstra a relevância da controvérsia judicial em torno do instituto da prescrição da contravenção disciplinar militar.

É necessário, urgentemente, fazer valer a Constituição da República e o artigo 18 da Lei nº 5.836/1972.


REFERÊNCIAS

[1] STRECK, Lenio. O Valor da Garantias: Dallagnol e a Prescrição; Januário e a Delação https://www.conjur.com.br/2019-dez-09/lenio-streck-dallagnol-prescricao-januario-delacao

[2] Art. 18. Prescrevem em 6 (seis) anos, computados na data em que foram praticados, os casos previstos nesta Lei.

[3] ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues, O Instituto da Prescrição no Processo Administrativo Militar, Jusmilitares, 25/1/2007.

[4] ROTH, Ronaldo João, In "Temas de Direito Militar, São Paulo: Suprema Cultura, p.39. ROTH, Ronaldo / ONO, Sylvia Helena. A Prescrição da Ação Disciplinar Militar: Limitação das Causas de Interrupção e Suspensão, Revista de Direito Militar nº 122. Janeiro/fevereiro de 2017.

[5] ABREU, Jorge Luiz Nogueira de Direito Administrativo Militar. São Paulo: Editora Método, 2010. p. 344 a 347.Manual de Direito Disciplinar, Curitiba: Juruá, p.319.

[6] STRECK, Lenio, Hermenêutica Jurídica (em) crise, 6ª ed. 2005, p.294

[7] STRECK, Lenio; https://www.conjur.com.br/2022-nov-16/lenio-streck-hermes-forcas-armadas

[8] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método Traços Fundamentais de uma Hermenêutica – Filosófica, p.489. 1999.

[9] GRAU, Eros Roberto. 2002, p. 22 Ensaio e Discurso sobre a Interpretação aplicação do Direito.

[10] DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010

[11] STRECK, Lenio. É possível fazer direito sem interpretar? conjur.com.br/2012-abr-19/senso-incomum-jurisprudencia-transita-entre-objetivismo

[12] FERRAZ, Renato, Assédio Moral no Serviço Público-Violação da Dignidade Humana, 2014, p. 54



Renato Otávio da Gama Ferraz é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, especialista em Direito Constitucional e Ciências Penais (Ucam) e Direito e Administração Pública (UGF), além de autor do livro Assédio Moral no Serviço Público (Violação da Dignidade Humana).


Revista Consultor Jurídico

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