OPINIÃO: População em situação de rua e cautelares penais alternativas

 

Segundo o artigo 282, §6º, do CPP, a prisão preventiva somente poderá ser decretada pelo juiz se não for cabível a aplicação de medida cautelar alternativa menos severa. Os pressupostos para a aplicação das medidas cautelares alternativas são basicamente os mesmos da prisão preventiva. Em suma, na atualidade, a prisão preventiva ostenta caráter subsidiário, vale dizer, somente terá cabimento quando a aplicação da medida cautelar alternativa não for suficiente para assegurar a preservação da ordem pública, instrução criminal ou aplicação da lei penal.

Segundo o artigo 319, do CPP, as medidas cautelares substitutivas da prisão preventiva são as seguintes: a) comparecimento periódico em juízo; b) proibição de acesso ou frequência a determinados lugares; c) proibição de manter contato com pessoa determinada; d) proibição de ausentar-se da comarca; e) recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; f) suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira; g) internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semiimputável; h) fiança e i) monitoração eletrônica.

Pois bem, em se tratando de pessoas em condição de rua, como impor o comparecimento periódico em juízo ou pagamento de fiança, se o indivíduo não possui condições para pagar o transporte até o juízo e muito menos de oferecer qualquer espécie de garantia; ou o recolhimento domiciliar se não possui moradia; e a monitoração eletrônica se não tem acesso a energia elétrica para recarregar a tornozeleira eletrônica? A solução, comumente adotada pelo Poder Judiciário, acaba sendo a decretação da prisão preventiva ante a inaplicabilidade das medidas cautelares em relação aos indivíduos em situação de rua.

A questão que se impõe analisar, portanto, é: as medidas cautelares substitutivas da prisão preventiva podem ser adaptadas às pessoas em condição de rua de forma que não sejam recolhidas ao cárcere pela condição involuntária que ostentam?

A respeito deste tema, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, foi editada a Resolução nº 425, de 8 de outubro de 2021, a qual instituiu a "Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua". A referida resolução considera população de rua "o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, eventuais vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia, sociabilidade e sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória" (artigo 2º).

Em relação aos procedimentos de natureza penal, a Resolução nº 425/2021, como princípio norteador, determina que será observada, quando da aplicação das medidas cautelares diversas da prisão, aquela que melhor se adapta à realidade da pessoa em situação de rua, em especial quanto à sua hipossuficiência, proporcionalidade da medida diante do contexto e trajetória de vida, além da possibilidade de cumprimento (artigo 19). Além disso, determina que deve ser analisada a função e proporcionalidade da medida diante do contexto de vida da pessoa, evitando-se a prisão preventiva apenas em razão da situação de rua (19, § 1º).

A referida resolução ainda ressalta que será priorizada a adoção de medidas distintas da monitoração eletrônica para pessoas em situação de rua (artigo 25) e, no caso de fixação de monitoração eletrônica, o juízo deverá, em conjunto com a rede de proteção social, indicar local de fácil acesso à energia elétrica, para carregamento da bateria do dispositivo eletrônico, inclusive no período noturno, assegurando que o ônus da não garantia do direito à moradia não recaia sobre o sujeito ou família em situação de rua (artigo 25, parágrafo único).

Como se percebe, a Resolução nº 425/2021 supre algumas lacunas legislativas e, de certa forma, respalda a atuação do magistrado que optar por não decretar a prisão preventiva do indivíduo em condição de rua. O problema é que a aplicação das medidas alternativas à prisão pode ser inviabilizada por inúmeras questões que são peculiares às pessoas em situação de rua.

Por exemplo, o recolhimento domiciliar poderia ser substituído pelo recolhimento a lares sociais mantidos pelo poder público. Contudo, não existem lares sociais em todos os municípios do país. De outro lado, a tornozeleira eletrônica só faz sentido se houver a delimitação de uma área específica para o indivíduo permanecer e onde possa ser encontrado. Ora, se houver alteração das condições climáticas a pessoa em condição de rua terá que procurar outro local para se abrigar, fora do limite estabelecido pela monitoração, descumprindo a ordem judicial. Essas são algumas questões que dificultam a adaptação das medidas cautelares diversas da prisão para as pessoas em condição de rua.

A verdade é que, ao invés de tentarmos adaptar medidas concebidas para outros cenários, devemos conceber medidas cautelares específicas para pessoas em condição de rua, tendo sempre em mente que a condição em que se encontram é involuntária ou decorre na ineficiência do Estado em prover-lhes condições dignas de moradia e sustento.

Além disso, pode-se aproveitar essa situação para tentar integrar esses indivíduos aos programas sociais, obrigando-os a comparecerem a restaurantes comunitários para fazerem suas refeições, hospitais públicos para fazerem exames periódicos ou tratamentos odontológicos, atribuindo-se a esses órgãos públicos a obrigação de comunicarem o comparecimento do indivíduo ao juízo.

Em suma, é preciso oferecer algo de que não disponham e assim criar incentivos para que as pessoas em condição de rua se aproximem do Estado e do convívio social com condições dignas, ao invés de simplesmente retirar-lhes o pouco de que ainda dispõem em nome da preservação da ordem pública, da instrução criminal e da aplicação da lei penal, conceitos que ordenam o convívio coletivo, mas que se tornam obsoletos se não houver condições individuais mínimas de existência digna.




Francisco Codevila é juíz federal em Brasília.


Revista Consultor Jurídico

Comentários