Por vislumbrar possível afronta à Constituição Federal, a 4ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo arguiu a inconstitucionalidade do artigo 6º do Decreto 11.302/22, editado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro e que concedeu indulto natalino aos policiais militares condenados pelo massacre do Carandiru.
Por unanimidade, o colegiado determinou a instauração de um incidente de inconstitucionalidade com remessa dos autos ao Órgão Especial.
Consequentemente, foi suspenso o julgamento dos recursos dos policiais até a apreciação do incidente, conforme cláusula de reserva de plenário (artigo 97 da Constituição Federal, artigos 481 e seguintes do Código de Processo Civil e Súmula Vinculante 10).
"O indulto é instrumento administrativo por meio do qual o chefe de Estado abdica do poder punitivo estatal. Consoante o artigo 84, inciso XII, da Constituição, compete privativamente ao presidente da República conceder indulto e comutação, de sorte que apenas referida autoridade pode estabelecer as hipóteses e os critérios exigidos para a concessão de benesses", afirmou o relator, desembargador Roberto Porto.
Contudo, na visão do magistrado, tal poder administrativo discricionário deve se submeter e respeitar os limites constitucionais e legais, conforme hierarquia das normas do ordenamento jurídico. Porto disse que, apesar de discricionário, o ato deve se submeter não só ao texto constitucional, mas também aos tratados internacionais aos quais o Brasil aderiu.
"Impossível indulto para crime hediondo. Diante da vedação constitucional à concessão de indulto a crimes de natureza hedionda, cogita-se a inconformidade do decreto em comento com a ordem constitucional. Os delitos, se não considerados hediondos à época de seu cometimento, não estarão sujeitos às previsões mais gravosas estabelecidas por lei posterior", acrescentou.
Porto fez referência ao fato de que o crime de homicídio só passou a ser enquadrado como hediondo em 1994, após forte mobilização popular pelo assassinato da atriz Daniella Perez. Em outubro de 1992, quando houve o massacre do Carandiru, apenas estupro, latrocínio e extorsão mediante sequestro eram considerados crimes hediondos no Brasil.
"Não se trata de aferir a hediondez dos delitos específicos debatidos nestes autos, mas sim a possibilidade da edição de um ato legislativo na contramão do contexto constitucional vigente, isto é, de conceder-se indulto a crime que, na data da promulgação do ato, é considerado, e desde há muito, de natureza hedionda", disse o magistrado.
Caso específico
Para o relator, o fato de o decreto de Bolsonaro se enquadrar perfeitamente ao caso dos policiais envolvidos no massacre do Carandiru "levanta dúvida acerca da conformidade da benesse especificamente aos réus": "O caso julgado nestes autos relaciona-se com a observância do arcabouço dos direitos humanos pelo poder público, visto se tratar de ação de agentes públicos contra pessoas privadas de sua liberdade".
Ainda segundo Porto, a inviabilização do julgamento dos PMs poderia significar afronta ao direito à vida, à dignidade da pessoa humana e aos direitos humanos. Assim, ele acolheu pedido do Ministério Público para instauração do incidente de inconstitucionalidade perante o Órgão Especial, com a suspensão do julgamento pela Câmara.
Decreto suspenso
A ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal, suspendeu, em liminar, nesta segunda-feira (16/1), trechos do indulto de Bolsonaro. A decisão tem validade até que o ministro Luiz Fux, relator sorteado, analise o tema após a abertura do ano judiciáro. O Plenário também precisará legitimar quaisquer outras decisões.
Para "evitar a consumação imediata de efeitos concretos irreversíveis" antes da análise definitiva da ADI proposta pela Procuradoria-Geral de Justiça, e conferir "necessária segurança jurídica a todos os envolvidos", a ministra considerou prudente suspender os trechos do decreto que foram questionados pelo PGR Augusto Aras.
A presidente também lembrou que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA já recomendou que o Brasil fizesse uma investigação completa, imparcial e efetiva sobre o massacre do Carandiru, pois o país teria violado direitos humanos e se omitido de punir os responsáveis. Para Rosa, o indulto "pode, em princípio, configurar transgressão às recomendações da comissão".
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Processo 0338975-60.1996.8.26.0001
Processo 0007473-49.2014.8.26.0001
Revista Consultor Jurídico
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