PANCADA NA SEGURANÇA PÚBLICA: Relatório da Anistia Internacional destaca violência no mundo e crise da segurança pública no Brasil

 

A Anistia Internacional lançou no final de julho o relatório 2014/15– O Estado dos Direitos Humanos no Mundo. Internacionalmente, 2014 foi um ano catastrófico para milhões de pessoas, atingidas pela violência. A resposta global a conflitos e abusos por Estados e grupos armados tem sido vergonhosa e ineficaz. Já no Brasil, o destaque é o agravamento da crise da segurança pública.
 
Como a Anistia percebe o agravamento das crises humanitárias internacionais?
 
O mundo tem vivido nos últimos anos uma espiral de violência que tem levado a crises humanitárias muito graves envolvendo os confrontos armados entre governos e entre atores não-estatais, mas que exercem controle de território, como é o caso do Estado Islâmico, como é o caso do Boko Haram na Nigéria, e as respostas violentas dos governos a situações de terrorismo ou de insegurança pública, com muita frequência estão levando ao agravamento destes conflitos, causando um ambiente de cerceamento de direitos, de violações de liberdades civis e políticas, nas quais as principais vítimas são as populações civis. Então, nós observamos estas graves crises em diversos países: na Síria, na Nigéria, no Sudão do Sul, na República Centro-Africana. Todos estes países, todas estas nações, têm sido afligidas, tem sido tragadas por esta espiral de violência. E é necessário que os governos formulem respostas a estas situações de crise que passem pelo fortalecimento dos direitos e não pela sua violação.

Como você vê a resposta a esta crise nos países europeus e Estados Unidos?
 
A resposta da Europa e dos Estados Unidos às crises humanitárias tem sido muito ineficiente, sobretudo pela incapacidade e omissão diante das crises de refugiados. Nós temos hoje no mundo, dezenas de milhões de refugiados, mais do que existiam por exemplo ao final da 2ª Guerra Mundial. E quase sempre a resposta dos países ricos tem sido de negar e impedir o acesso desses refugiados aos seus territórios. Então quem de fato tem encarado o fardo de receber estas emergências humanitárias têm sido países em desenvolvimento, como a Turquia e o Paquistão, que são vizinhos a estas regiões de conflito, mas que muitas vezes não tem os recursos econômicos necessários para lidar com este fluxo de milhões de refugiados. Então é necessário um engajamento mais forte dos países ricos. Eles têm esta responsabilidade e não têm vivido à altura dela.
 
E como você vê o papel do Brasil neste contexto internacional?
 
O Brasil tem sido chamado de maneira crescente a exercer um papel de liderança e de responsabilidade em vários debates internacionais relevantes sobre direitos humanos que vão desde o tratado de comércio de armas até a aceitação de refugiados, passando pelas grandes negociações de direitos humanos na ONU – no Conselho de Direitos Humanos em Genebra ou na Assembleia Geral em Nova York. O Brasil tem desempenhado algumas atuações-chave em temas como a privacidade na internet e como a não discriminação por orientação sexual. Agora, é necessário que o Brasil aprofunde esta agenda, que o Brasil se engaje de maneira mais intensa nos debates sobre direitos humanos. Chama atenção, por exemplo, que o Brasil não tenha ratificado até hoje o tratado de comércio de armas, embora tenha assinado este acordo no primeiro dia. E é necessário também que o Brasil tenha uma postura mais crítica aos grandes violadores de direitos humanos nos fóruns internacionais. Em muitos casos há uma grande relutância e cautela do Brasil em fazer esta crítica, em realmente expor estes países que estão sendo graves violadores. E a palavra do Brasil tem peso. O Brasil é um país respeitado pela sua moderação, pelo seu equilíbrio e pode fazer uma diferença positiva em várias situações de crise.
 
O relatório mostra que no ano de 2014 não houve mudanças significativas quanto à forma que os governos lidam com a segurança pública. Como a Anistia Internacional avalia a segurança pública no Brasil?
 
A segurança pública no Brasil vive hoje uma crise muito grave e que se reflete de várias maneiras. Nós podemos observá-la, por exemplo, no aumento dos homicídios cometidos por policiais, que tiveram um crescimento muito impressionante ao longo de 2014, sobretudo no Rio de Janeiro e São Paulo; podemos vê-la também na enorme impunidade que grassa com relação a violações de direitos humanos cometidas por agentes do Estado; Na dificuldade de se investigar homicídios no Brasil, já que em torno de 85% deles permanecem impunes, sem que as autoridades consigam apontar quem foram as pessoas responsáveis por estes crimes. E tudo isso cria um sentimento de medo, tudo isso cria uma angústia na população muito ruim, muito preocupante para toda a sociedade e que torna também mais difícil a mobilização social, torna mais difícil a articulação das pessoas na defesa de seus direitos, uma vez que muitas vezes elas acabam cerceadas pelo medo e preocupadas com esta violência muito grande no cotidiano.
 
Você pode exemplificar dados da violência no Brasil?
 
Bom, temos vários casos que estão cobertos no relatório deste ano. Há casos expressivos como o do pedreiro Amarildo, no Rio de Janeiro, que desapareceu após ser levado para uma Unidade de Polícia Pacificadora e o Ministério Público acredita que ele foi morto sob tortura por policiais desta unidade; Há o caso da Claudia Ferreira da Silva, também no Rio de Janeiro, que foi atingida por disparos feitos por policiais e depois foi arrastada por estes policiais na sua própria viatura policial e acabou falecendo em decorrência desses ferimentos; Ou o caso do dançarino Douglas da Silva, também no Rio, na comunidade do Cantagalo, que apareceu morto após uma operação policial, com ferimentos de bala; Tudo isso aponta para um cenário de segurança extremamente frágil, extremamente instável e marcado por esta impunidade, marcado por esta dificuldade de que o Estado possa controlar a si mesmo. De que o Estado possa fazer valer a transparência, a prestação de contas sobre seus próprios agentes. E claro, temos também níveis grandes de violência rural no Brasil, de violência contra povos indígenas, contra quilombolas, contra pequenos agricultores. Aí temos diversas situações nos estados do Mato Grosso do Sul, contra os Guarani Kaiwoá; ou no Estado do Maranhão, contra comunidades quilombolas; e muito também na enorme ameaça, enorme persistência de violência contra defensores de direitos humanos, contra ativistas que estão mobilizados Brasil afora pela defesa de vários direitos importantes e que têm sua atuação marcada pela constante ameaça de violência, inclusive do homicídio.
 
Maurício Santoro
Cientista político e assessor de direitos humanos da Anistia Internacional Brasil

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