VIOLÊNCIA SEXUAL DOMÉSTICA: Estupro de marido é menos estupro? Cuidado com as manipulações

 
 
Um estupro realizado por marido é menos grave do que por um estranho? Pode-se manipular o bem jurídico protegido para tal finalidade? Qual o imaginário dos metidos em processo penal, como diz Jacinto Coutinho, sobre o tema? Seremos breves e enunciativos, sem prejuízo de voltarmos ao tema noutras oportunidades.
 
A partir dos jogos de linguagem inautênticos a noção de bem jurídico exerce uma função retórica no papel da compreensão do Direito Penal, razão pela qual é explorada pelos atores e desfaz, assim a prometida ‘ilusão de segurança jurídica’ (Vera Andrade) hipotecada pelo ‘Princípio da Legalidade’. A modificação/manipulação do significante bem jurídico altera o resultado, movimentando-se astutamente no meio da dogmática jurídica. O estratagema é sutil e pouco compreendido pela maioria que se agarra nas aparências legislativas. Por isso seria mais interessante pensar-se em lesividade conforme Zaffaroni.
 
Nessa construção abre-se espaço para que mediante o recurso ao bem jurídico modifique-se as soluções da jurisprudência e os “juízos de valor” do julgador, como por exemplo ocorre com frequência, diz Warat, no estupro (CP, art. 213), apesar da reforma acerca da dignidade sexual, acaba-se deslizando perversamente para honestidade da vítima’, ‘sua resistência’ ou ‘deveres do casamento’. A sombra do dever de coabitar e o direito de estuprar ainda é algo não desaparecido do imaginário jurídico, embora não dito, bem sabe Gabriel Divan que escreveu um livro sobre o tema.
 
Envergonha-se. Aliás, quando se fala de sexo quase sempre invoca-se uma vergonha de fachada. Com essa artimanha não interessa mais a conduta do acusado mas apenas se a vítima é digna e merecedora do paternalismo Estatal, estando ela em julgamento, consoante se verifica nesta manifestação do Ministério Público: “Será justo, então, o réu Fernando Cortez, primário, trabalhador, sofrer pena enorme e ter a vida estragada por causa de um fato sem consequências, oriundo de uma falsa virgem? Afinal de contas, esta vítima, amorosa com outros rapazes, vai continuar a sê-lo. Com Cortez, assediou-o até se entregar (fls.) e o que, em retribuição lhe fez Cortez, uma cortesia…”
 
Na Espanha somente a partir de 1989 foi aceito o estupro dentro do casamento, sendo certo, ademais, que a discriminação de gênero não assola somente o Brasil, uma vez que conforme noticiam Valiente e Pardo: “Hay uno [julgado] de 1997, en el que la Audiencia de Barcelona rebajó la pena a un marido que violó a su esposa ao estimar que un ataque sexual cometido por el esposo es menos grave que si lo cometiese un desconocido.” Isto é, o ‘estupro’ do dito cônjuge é menos grave, afinal ela já conhecia o órgão ad hoc…. É uma inversão intolerável democraticamente, também pelo disposto no art. 7º, III, da Lei da Violência Doméstica.
 
Este recurso retórico pode também ser manejado no caso de uso de substâncias ilícitas (Lei n. 11.343/06), modificando-se o ‘bem jurídico’ tutelado. Ao invés da ‘incolumidade pública’, coloca-se a ‘integridade física’, e como ninguém pode ser condenado sem uma ação ofensiva a terceiros, no caso, tratar-se-ia de autolesão, passando a latere da captura semântica da lei, conforme, aliás, decidiu a Corte Suprema Argentina, ao declarar inconstitucional a criminalização de pequenas quantidades de droga para consumo próprio.
 
Enfim, os requisitos retóricos funcionam para desterrar a ‘prometida segurança’ cantada em prosa e verso pelo senso comum teórico. “Conclui-se, portanto, que tanto como a regra da legalidade, o princípio de que não há pena sem culpa, tem estatuto de ficção jurídica, destinado a criar a imagem de segurança e não arbitrariedade da ordem normativa. Embora apontados como leis científicas na construção da chamada ciência do direito penal esses princípios são regras retóricas e argumentativas.”
 
As manipulações estão aí e é preciso estar atento para não se cair em armadilhas aparentemente lógicas. Estupro de parceiro não se diferencia para mais brando. E lutar contra o imaginário do senso comum teórico é o desafio.
 
Sobre o autor:
Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC). Email: alexandremoraisdarosa@gmail.com