Confrontos acirram debate sobre métodos e cultura da polícia do Rio



Pouco depois de o papa Francisco ter sido saudado calorosamente por autoridades no Palácio Guanabara na segunda-feira ─ e ter partido para uma noite sossegada na residência da Arquidiocese do Rio, no bairro do Sumaré ─ a situação no lado de fora desandou.

Houve fortes confrontos entre a polícia e manifestantes que protestavam na rua Pinheiro Machado contra o governador Sérgio Cabral e os gastos públicos para sediar a Jornada Mundial da Juventude.

Pelo menos oito pessoas foram feridas ─ uma atingida de perto com um tiro de bala de borracha. Policiais prenderam dois repórteres da Mídia Ninja, o grupo de ativistas que tem feito coberturas ao vivo de dentro dos protestos. Eles foram libertados poucas horas depois.

Este foi o mais recente de uma série de confrontos entre polícia e manifestantes que têm marcado os protestos no Rio. Eles têm levado defensores de direitos humanos e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) a criticar forças de segurança pelo uso excessivo da força e por prisões arbitrárias.

Átila Roque, diretor da Anistia Internacional no Brasil, afirma ter testemunhado o uso "totalmente indiscriminado" de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borracha, "orientados não contra as pessoas que estivessem oferecendo alguma ameaça, mas simplesmente para dispersar todo mundo".

"Vimos policiais perseguindo as pessoas, encurralando-as em ruas, bares e até em um hospital, e atacando-as com gás lacrimogêneo e balas de borracha", diz Roque. Ele próprio disse ter sido atingido por borrifadas de spray em confrontos que chegaram à Praça São Salvador, próximo ao Palácio Guanabara, onde fica a sede da Anistia.

Na semana passada, a cúpula de segurança do Rio convocou uma reunião emergencial após o protesto que acabou em atos de vandalismo no Leblon, próximo à casa do governador Sérgio Cabral. A polícia condenou a "ação de vândalos" ─ mas foi criticada pela OAB por cruzar os braços e não preveni-las.

O secretario de Segurança Pública José Mariano Beltrame afirma que as manifestações são algo novo, com "requisitos e ingredientes novos", e que a polícia está fazendo ajustes.

"Estamos buscando um caminho intermediário, um caminho entre muitas vezes a prevaricação (crime cometido por um servidor ao não exercer sua função) e o abuso da autoridade", diz.

Para a socióloga Julita Lemgruber, a atuação da polícia nas manifestações evidencia uma cultura de confronto que está arraigada na Polícia Militar e que moradores das favelas cariocas conhecem de longa data.

"Se você faz o policiamento das ruas com uma mentalidade de guerra, vai lidar com as pessoas nas ruas como inimigos", diz Lemgruber, que é diretora do Centro de Estudos de Segurança e de Cidadania da Universidade Cândido Mendes.

Um estouro e um clarão


A publicitária Renata Ataíde, de 26 anos, afirma ter experimentado essa inversão de papéis em primeira mão no dia 20 de junho, quando foi à primeira manifestação de sua vida ─ e voltou gravemente ferida.

Renata foi uma das 300 mil pessoas que lotaram a avenida Presidente Vargas na caminhada em direção à prefeitura. A marcha começou pacífica. "O clima era de total euforia, parecia Copa do Mundo", diz. Mas acabou sendo a mais violenta da onda de protestos de junho.

Grupos de vândalos deixaram uma trilha de depredação na avenida Presidente Vargas, quebrando semáforos, pontos de ônibus, vitrines e ateando fogo a pilhas de lixo.

Tropas do Batalhão de Choque usaram bombas de gás lacrimogêneo e balas de borracha para dispersar a multidão, que recuou de volta para a Igreja da Candelária, onde a manifestação havia começado.

 Membros da Tropa de Choque da polícia do Rio | Foto: BBC

'Bem treinados'

A polícia afirma estar fazendo o seu melhor para responder a situações difíceis, buscando coibir a ação de vândalos que usam as manifestações para promover a desordem.

Juliana Barroso, subsecretária de Educação, Valorização Profissional e Prevenção da Secretaria de Segurança Pública, afirma que a polícia está constantemente reexaminando sua atuação e vem buscando se aperfeiçoar e respeitar a proporcionalidade em suas ações.

"O Batalhão de Choque é bem treinado, eles estão munidos de técnicas, estão munidos de equipamentos. O que está faltando, talvez, é essa reflexão sobre o limite. Estamos trabalhando esse processo decisório. Onde devo parar e onde devo continuar?"

Barroso destaca que a unidade policial tem participado de sessões de treinamento com forças policiais da Espanha, dos Estados Unidos e da Alemanha ─ com oficinas sobre como lidar com multidões e sobre investigação, por exemplo.

Mas os soldados e cabos com menor especialização também vêm engrossando as linhas policiais nas manifestações sem contar com o mesmo treinamento.

A BBC Brasil conversou com um grupo de PMs de plantão à margem de um protesto no Centro do Rio. Eles disseram que a rotina desde o início das manifestações tem sido exaustiva e que muitas vezes não são compreendidos pela população.

"As pessoas se revoltam, mas a culpa não é nossa. Elas esquecem que somos pessoas como qualquer outra", disse uma jovem policial.

"Tanto os manifestantes quanto os policiais são seres humanos, então há falhas dos dois lados. Não dá para dizer que a culpa é dos manifestantes que vieram fazer baderna ou dos policiais que fizeram a coisa errada."

Um de seus colegas disse que o Choque é treinado para lidar com multidões ─ mas eles, não.

"Nós da tropa (não especializada) não somos preparados para manifestações. Estamos aqui muitas vezes de enfeite, a verdade é essa. Porque se vier uma turba, nós vamos correr. É só para dizer que tem polícia na rua."

BBC BRASIL

Comentários