LIMITE PENAL: O (des)conforto com a punição do humano é um problema?

O (des)conforto com a punição é algo humano. Ao mesmo tempo que a ameaça de punição somente funciona com os neuróticos, dada a alteração contemporânea da posição subjetiva do sujeito, conforme aponta Charles Melman, no sentido de que vivemos na lógica da perversão generalizada, a resposta penal, no fundo, serve de impulso criminógeno. Dito diretamente: mais crimes, mais penas, mais violência.

Além disso, com o giro econômico operado pelo neoliberalismo, a prisão como forma de subjugação ao trabalho, diante de sujeitos descartáveis, também deixou de ser uma forma eficiente de manejo da pobreza e dos desviados para se transformar em custo coletivo. Daí o influxo atual para monitorar em vez de punir. Cada vez mais as propostas de controle social se dirigem à exclusão monitorada, em guetos e zonas de prisão sem grades, com baixo custo, especialmente por monitoramento (eletrônico, passivo etc.).

Porém, há também o argumento da desumanidade das penas e do desconhecimento dos efeitos penais no corpo (físico e psicológico) dos acusados e vítimas, razão pela qual o discurso da Justiça Restaurativa ganha fôlego.

Nesse contexto, surge o trabalho monográfico de Fernando Borba de Castro — Justiça Restaurativa: uma alternativa crítica ao ilusório sistema punitivo —, aprovado, com mérito, junto à Furb e publicado em formato de livro (aqui). O trabalho é cuidadoso e parte das dificuldades de compreensão do lugar e da função da Constituição, do paradoxo das fontes, da ilusão de segurança jurídica que embala os juristas, diferenciando, com Marco Marrafon, dogmatismo e dogmática. Daí que relê, com denodo, os limites e insuficiências do sistema de controle penal, justamente no aspecto que ninguém fica satisfeito com o sistema atual. O Direito Penal, na via da resposta oferecida (pena), não encaminha o acusado, deixa a vítima insatisfeita, em regra, além de criar custos ao Estado e aos contribuintes.

Demonstra, também, a confusão sobre a noção de Justiça Restaurativa, significante pelo qual intervém os mais diversos movimentos, dentre os quais os que pretendem uma reconciliação cristã, de causar náuseas, bem assim as propostas democráticas, que respeitam os limites e os contextos dos envolvidos. Assim é que buscando dialogar com os projetos em tramitação e os já em vigor, Fernando descortina a beleza das possibilidades da Justiça Restaurativa.

Fui grandemente influenciado pelas noções de Juan Carlos Vezzulla e Luis Alberto Warat, para os quais a Justiça Restaurativa não pode ser monetarizada, ainda que a reparação moral e material seja uma das hipóteses de encaminhamento, mas o impacto humano do reencontro deve ser o mote. No fundo, o sujeito que se diz vítima de algo reivindica o algo que o Estado não pode conferir, mas o procedimento restaurativo pode auxiliar, ou seja, dar-se conta de seu lugar e função no conflito, empoderando a subjetividade e dando sentido ao evento traumático.

Ampliando a “foto” da abordagem, Fernando aposta, assim como eu, no alargamento da compreensão do conflito de maneira contextual, resgatando bibliografia sofisticada, embora possa ter alguma divergência pontual na trajetória eleita, comungo da pretensão de superar as mazelas do sistema penal que serve, atualmente, para que se possa ter sempre um “bode expiatório” (Rene Girard) capaz de concentrar a nossa fúria humana por sacrifícios redentores.

O trabalho em prol da Justiça Restaurativa, portanto, inscreve-se na reconstrução da cidadania do povo brasileiro, cuja população carcerária é imensa, pobre e sem sentido democrático. Assim como o professor João Salm, de Chicago, a aposta na Justiça Restaurativa é para quem têm coragem de acreditar no futuro e na violência constitutiva que nos move, sempre. Queiramos ou não.


Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

Revista Consultor Jurídico