OPINIÃO: A prisão preventiva como regra

É um truísmo afirmar que os tribunais superiores estão assoberbados de processos, especialmente quando analisado o número de demandas proporcionalmente à quantidade de ministros. A defesa — sempre ela — é usualmente apontada como a principal responsável por esta situação, em razão do excessivo número de recursos interpostos e de habeas corpus impetrados.


É necessário repensar o sistema recursal brasileiro; porém há outras causas do problema, tão ou mais importantes, que não são realçadas na medida de sua real contribuição para o congestionamento de processos: constata-se, na prática processual penal, a corriqueira prolação de decisões judiciais sem a devida fundamentação, a ensejar o uso dos meios de impugnação cabíveis.



Exemplo bastante emblemático dessa constatação é a decisão monocrática do ministro rlator Schietti Cruz, nos autos do HC 800.963/MG (DJe 10/2/2023), que diz ser imprescindível fundamentação idônea para decretação de medidas cautelares diversas da prisão. Trata-se de algo simplório, até mesmo tautológico, mas que desafia constantemente a deliberação dos tribunais superiores, razão pela qual elegemos essa temática como foco do presente artigo.


A Lei nº 12.403/2011 pôs fim ao sistema da bipolaridade das cautelares e introduziu no ordenamento jurídico brasileiro as medidas cautelares diversas da prisão. O desiderato do legislador foi relegar as prisões preventivas à ultima ratio (artigo 282, §6°, do CPP). Na prática, esta legítima pretensão restou frustrada, porquanto, em vez de serem tratadas como alternativa à prisão, magistrados passaram — equivocadamente — a atrelar as medidas cautelares à liberdade do acusado.


Nesse contexto, surgiu a necessidade de mais uma alteração legislativa. A Lei 13.964/2019 ("pacote anticrime") modificou o §6° do artigo 282 do CPP, no sentindo de estabelecer explicitamente o que já era exigível como uma decorrência lógica dos "direitos processuais fundamentais"[1]: que o juiz fundamente, com elementos do caso concreto, a real necessidade da prisão preventiva e o não cabimento da substituição por outra medida cautelar.                  


Umas e outras têm a mesma natureza jurídica e, por conseguinte, submetem-se ao mesmo parâmetro normativo, de forma que a fundamentação também é imprescindível para a legítima realização judicativo-decisória das cautelares diversas da prisão, sejam de natureza pessoal, real ou probatória. Sobreleva-se que, a despeito de qualquer exigência legal, o dever de fundamentação das decisões judiciais é um mandamento constitucional (artigo 93, IX da CF), devidamente esmiuçado no § 2º. do artigo 315 do CPP, igualmente incluído pelo pacote "anticrime".


A Lei 12.403/2011 estabeleceu ainda a exigência de contraditório prévio para a decretação de uma medida cautelar. A regra poderia ser excepcionada, mediante a devida fundamentação, nos casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida. Todo esse raciocínio era sustentado pela doutrina; na prática, a exceção, sem motivação expressa nas decisões, se transformava em regra.


Diante dessa situação, mais uma vez interveio a Lei 13.964/2019 (artigo 282, §3°, CPP) para estabelecer expressamente: "... e os casos de urgência ou de perigo deverão ser justificados e fundamentados em decisão que contenha elementos do caso concreto que justifiquem essa medida excepcional". O "pacote anticrime" preceituou ainda que a ausência dessa fundamentação configura nulidade (artigo 564, V, do CPP).


Eis que estamos chegando ao final do primeiro quartel do século 21 e o problema persiste: as medidas cautelares são aplicadas como uma consequência natural da prisão em flagrante, e não como medidas restritivas que precisam ser devidamente justificadas diante das circunstâncias do caso concreto.


Embora o tema ainda careça de estatísticas mais amplas, há pesquisas cujos resultados atestam a banalização do uso das medidas cautelares. Segundo o relatório realizado pelo IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), em uma amostragem de 392 audiências de custódias realizadas no estado do Rio de Janeiro no período de setembro a dezembro de 2018, em um único caso não foi aplicada medida cautelar ao autuado[2].


A medida cautelar diversa da prisão, embora menos gravosa, também implica restrição à liberdade do acusado. Dessarte, só poderão ser aplicadas em seu desfavor as medidas cautelares que "ainda se mostrem comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente"[3], porquanto a presunção de inocência, enquanto norma de tratamento, assegura que o acusado não pode ser tratado como culpado durante a persecução penal.


Dentro da perspectiva da cautelaridade, para decretação de qualquer medida cautelar, exige-se como requisito o fumus commissi delicti —plausibilidade de cometimento de um crime — e como fundamento o periculum libertatis, consubstanciado no perigo que a liberdade do acusado pode representar ao regular prosseguimento do processo. Havendo dúvidas sobre a existência desses elementos, não se pode mitigar o direito à liberdade; quando considerada necessária a restrição diversa prisão, é imprescindível obedecer aos parâmetros legais, especialmente o dever de fundamentação adequada das decisões judiciais.


A instrumentalidade qualificada é uma idiossincrasia das medidas cautelares, vez que objetivam assegurar o regular funcionamento da justiça por intermédio do alusivo processo (penal) de conhecimento[4]. Por conseguinte, a decisão judicial que as decreta baseia-se em um juízo de perigosidade processual, que não se confunde e nem se mescla com o juízo de culpabilidade.


Em uma audiência de custódia, o magistrado exerce um juízo bifronte sobre a prisão. Primeiramente, com base em uma retrospectiva dos fatos, decide pela legalidade da prisão. Sendo o caso de homologação, a atividade judicante volta-se à prognose da necessidade de conversão do flagrante em medida cautelar (prisão ou outra menos gravosa). A resposta judicial à prisão em flagrante deveria ser, em regra, a liberdade. Excepcionalmente, autoriza-se a aplicação de medida cautelar, da menos gravosa até a imperiosa necessidade da prisão preventiva, em uma verdadeira "progressividade aflitiva"[5].


Este arcabouço jurídico desprovido de qualquer complexidade vai de encontro à práxis judicial. No afã de provar à opinião pública que o Judiciário não é leniente com a criminalidade, e que a audiência de custódia não é "para soltar bandido", comumente os magistrados impõem à maioria dos que passam pelas audiências de custódia, no mínimo, alguma medida cautelar. O mais grave é que, em visão autoritária do processo penal, a prisão preventiva não raramente é tratada como regra, de modo que muitos juízes acreditam piamente que são generosos quando determinam ao autuado uma "eles" cautelar diversa da segregação cautelar.


A imposição desmedida de medidas cautelares nas audiências de custódia, sem a adequada fundamentação sintonizada com a situação concreta, prêt a porter, finda por desvirtuar a "função de tutela" da liberdade atribuída ao Estado de Direito, ou seja, "o princípio da preservação a maior possível da liberdade sob a limitação a menor possível da liberdade"[6]. Natural, portanto, que advogados e defensores públicos se insurjam pelas vias impugnativas dos recursos e Habeas Corpus para que sejam sanados os vícios de fundamentação de decisões e de consequências tão deletérias.


Nesse contexto, o olhar meramente quantitativo de recursos e remédios constitucionais postos à apreciação do Poder Judiciário implicará uma superficial relação de causa e efeito que enfoca o problema do congestionamento processual em atitudes daqueles que exercem funções essenciais à justiça. Na busca por soluções, não se pode olvidar que alterações legislativas devem ser acompanhadas por mudança na cultura de muitos magistrados, que enxergam medidas cautelares como uma dádiva concedida ao jurisdicionado.


 


Referências


CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003


FRANCO, Cordero. La misura cautelare: oltre la riforma. Milano: Giuffrè, 2003


LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019


NEVES, António Castanheira. O princípio da legalidade criminal. In Digesta, Vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1995


IDDD; JUSTIÇA GLOBAL; OBSAC-UFRJ. Prisão como regra: Ilegalidades e Desafios das Audiências de Custódia no Rio de Janeiro. Niterói: EDG Editora Gráfica, 2020. Disponível em: https://iddd.org.br/wp-content/uploads/2020/11/prisacc83o-como-regra_final.pdf. Acesso em: 21/06/2023.


[1] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p.446.


[2] IDDD; JUSTIÇA GLOBAL; OBSAC-UFRJ. Prisão como regra: Ilegalidades e Desafios das Audiências de Custódia no Rio de Janeiro. Niterói: EDG Editora Gráfica, 2020, p. 71. Disponível em: https://iddd.org.br/wp-content/uploads/2020/11/prisacc83o-como-regra_final.pdf. Acesso em: 21/06/2023.


[3] DIAS, Jorge de Figueiredo. Sobre os Sujeitos Processuais no Código de Processo Penal, In: Jornadas de Direito Processual Penal: O Novo Código de Processo Penal, Coimbra: Livraria Almedina, 1995, p.27.


[4] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 647.


[5] CORDERO, Franco. La misura cautelare: oltre la riforma. Milano: Giuffrè, 2003, p.28.


[6] NEVES, António Castanheira. O princípio da legalidade criminal. In Digesta, Vol. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 411


Gina Ribeiro Gonçalves Muniz é defensora pública do estado de Pernambuco e mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Coimbra.


Nestor Eduardo Araruna Santiago é advogado criminalista em Fortaleza. Doutor em Direito, com estágio pós-doutoral. Professor titular da Universidade de Fortaleza (doutorado, mestrado, especializações e graduação em Direito). Professor Associado da UFC (Universidade Federal do Ceará — graduação em Direito).





Revista Consultor Jurídico

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