Vigiar e punir: a lógica do “Grande Irmão”



Ao tomar conhecimento do ambicioso projeto da Prefeitura do Município de Feira de Santana que, superando até mesmo o planejamento feito para a própria capital do Estado, pretende monitorar quase toda a cidade através de câmeras instaladas nos diversos bairros da nossa Princesa do Sertão, lembrei-me de “1984” e de “Admirável Mundo Novo” e da aderência que esses livros escritos respectivamente por George Orwell e Aldous Huxley possuem com o cenário sociocultural do século XXI.

Nessa ótica, seguindo a máxima dos “Tostines”, não saberemos dizer se Huxley e Orwell acertaram suas visões ou se foram seguidos como quem segue uma cartilha, mas o certo é que, em nome da segurança, cada vez mais, perdemos a nossa liberdade e, hoje, nos encontramos num momento de transição entre um modelo de sociedade vista por Foucault como disciplinar, para um modelo identificado por Gilles Deleuze como de controle.

Tal e qual a história do sapo fervido, estamos vivenciando a passagem de uma forma de encarceramento completo para uma espécie de controle aberto e contínuo, aonde, lentamente, a liberdade nos vai sendo retirada, a ponto de não mais parecer um valor predominante na cultura contemporânea, pois a segurança é muito mais estimada.

Nesse conflito entre a liberdade e a segurança, a tendência contemporânea é restringir a liberdade, por intermédio de um discurso que reproduz a lógica foucaultiana do confinamento, em toda a sociedade, sem que haja necessidade da existência dos muros que, outrora, separavam o lado de dentro das instituições do seu exterior, através do uso das câmeras de vídeomonitoramento.

Tal e qual o modelo original, o panóptico moderno tem uma boa eficácia no seu emprego em locais restritos, sem grandes movimentos de pessoas, como na segurança patrimonial, mas, comprovadamente, apresenta muitas limitações em locais públicos com grandes movimentações de pessoas, onde, dificilmente, o operador vai constatar uma anormalidade, a não ser que seja alertado para o fato ou este seja de grande vulto.

Com a vigilância contínua, concretizada pela propagação das câmeras no controle de espaços restritos, no trânsito e, mais recentemente, na vigilância de espaços públicos, reinventou-se o panóptico benthaniano que, agora, passa a atuar com o objetivo de transformar, de maneira extensiva e intensiva, os modos de viver, pensar e agir dos indivíduos.

Nessa lógica, já nos acostumamos à difusão epidêmica da vigilância eletrônica e a sair de casa, transitando na cidade sob o olhar invisível, onividente e onipresente do “Grande Irmão”, cuja presença, não raro, às vezes é anunciada pelos dizeres: “Sorria, você está sendo filmado”.

Apesar da tendência ao uso indiscriminado do videomonitoramento, como elemento inibidor da violência e da criminalidade, não podemos esquecer que, na Inglaterra, país que mais investiu no uso deste sistema como política de segurança, já se comprovou que esse olhar eletrônico é eficaz na prevenção de pequenos delitos, infrações de trânsito e depredações ao patrimônio, mas não funciona bem como inibidor de crimes graves, como assaltos a mão armada e seqüestros.

Fazendo minhas as palavras de Luiz Antônio Brenner Guimarães, também entendo que, a bem do contribuinte, deveríamos adotar na segurança pública os métodos e procedimentos utilizados nas políticas de prevenção da saúde e, entre estes, a obrigação de testar e comprovar a efetividade de um novo “remédio”, antes que a sua utilização possa ser liberada e, para que, esteja apto a disputar os limitados recursos públicos.

Dominados por esse olhar multiforme das câmaras encontradas a cada passo, não paramos para refletir até que ponto a onda do videomonitoramento não reflete o desespero dos governantes municipais para não sentir nas urnas a indignação popular, com a falência dos esforços dos governos estaduais em combater a insegurança?

E assim, nós vamos vivendo com muitas dores, perdas e arranhões, vendo o futuro repetir o passado reinventado, numa sociedade escópica e telescópica, onde o olho que tudo vê, vigia e pune, mas, também, nos recompensa ao nos possibilitar a fama e a fortuna com seus programas televisivos e voyeuristas.

Hoje, os vigias do “Grande Irmão”, somos nós que nos enquadramos neste modo de vida oferecido pela sociedade, pois, de acordo com Foucault, o poder moderno exerce-se na produção e na repressão. Mas, convém lembrar que, também, somos nós os produtores, os produtos e os reprimidos desta sociedade que criamos. Não somos simples marionetes deste jogo de forças, mas co-autores no nosso silêncio, na nossa omissão e na naturalidade com que encaramos este estado das coisas.

Nesta sociedade do controle, o fato é que somos controlados. E não sabemos bem quem controla os controles. Neste sentido, entre nós, há a coerção e a intimidação que havia em “1984”, mas há, também, a propaganda e a sugestão estatais exercidas pelo “Grande Irmão”, pois, como nos ensinou George Orwell: “Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado.”

Fonte: Site A QUEIMA ROUPA

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